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Em que medida Cristãos?
sábado, 14 de fevereiro de 2015 Publicado por Unknown

Por estes dias muito se tem debatido sobre o praticar da tolerância ou não no direito individual de opinar abertamente. Entre os que realmente têm e formulam uma opinião própria surgem, com demasiada frequência em demais problemáticas, outros que apregoam a liberdade de expressão e se deixam na verdade levar pelo pensamento da maioria ou de determinado grupo que só por si é controlado pelos "barões sociais": grupos políticos, movimentos sociais, hierarquia religiosa. Defendemos declaradamente, neste artigo, à semelhança do célebre diálogo de Sócrates, o filósofo grego, com Diótima, que está na origem do Amor platónico, (Diótima: o que não for belo é forçoso ser feio. Sócrates: E também se não for sábio é ignorante? Ou não percebeste que existe algo entre sabedoria e ignorância?) , em género de trocadilho que a liberdade é portanto a intermediária entre a manipulação e o cárcere do alvedrio.

A tónica atribuída à "liberté" francesa ilude um maior problema que atormenta a sociedade europeia desde os seus primórdios: a convivência pacífica entre diversas linhas de pensamento. A que nestes nossos dias, mais que em qualquer outro momento da História, a "liberdade" faz-se maior que a igualdade e que a fraternidade e os valores do respeito e tolerância vêm-se engolidos pela gula libertina. Se por um lado nos damos ao luxo e felizmente, de vivermos e convivermos em democracia em que são consagradas as liberdades individuais, por outro a máxima "a minha liberdade acaba onde começa a do outro" só por si pressupõe tolerância que limita o ser totalmente livre e parece desagradar uma crescente sociedade desafogada de valores. Numa linha de pensamento oposto, sob mentalidades alimentadas por ideologias radicais normalmente a fim de estados teocráticos ou simplesmente estados totalitários, o individualismo é inexistente ora pelo controlo estatal ora por uma ideologia própria de disciplina e submissão que delimita o usufruto de simples liberdades como o sejam a da crítica.

Se bem que repugne a uma Europa, por enquanto, na sua totalidade democrática o último pensamento exposto, surgem por esta altura e de forma crescente sentimentos xenófobos relativamente ao islão que em si e falando como orgulhoso europeu tingido maioritariamente pela cultura cristã, é bem mais e não tanto como os movimentos fundamentalistas que despoletam. Admitimos, portanto, na presente sociedade o choque ideológico mas até que ponto nos distanciamos, cidadãos portugueses crescidos na cultura europeia tradicionalmente cristã, da cultura Islâmica?

Volvidos são 919 anos desde o início do movimento cruzada que se perpetuando até 1247 teve como intuito fundamental retirar os Lugares Santos das mãos dos "infiéis", sendo sobretudo, em determinados momentos, um pretexto para muitos Nobres Cavaleiros estabelecerem contatos comerciais ou até adquirirem propriedades nos inacessíveis locais. Fosse sob que pretexto fosse a verdade a que o início das cruzadas marcaria o início do Expansionismo Europeu. Se por um lado o fundo religioso motivava as almas sedentas de redenção por outro a ânsia de saque confundia-se, numa sociedade fragmentada, com o pesar doutrinário.

No nosso país o crescimento territorial fez-se com a ajuda do movimento cruzadístico sendo que conviviam na Península cristãos do rito latino e muçulmanos sunitas constituindo os segundos aquilo a que se chamava no século XI o califado Almôada. Data porém de uma cronologia precedente a invasão muçulmana, 711, correspondendo a igual datação a queda do Reino Cristão Visigótico. A historiografia aponta o ano de 718 como o de início da Reconquista sob baluarte cristão, sendo que o seu término data de 1492 após entrega de Granada aos Reis Católicos Fernão de Aragão e Isabel de Castela.

No território Resendense existiu uma ocupação efetiva muçulmana com especial incidência em São Martinho de Mouros mais propriamente no chamado Castro da Mogueira, a comprová-lo encontram-se diversos objetos mouriscos achados no local. Embora no território a norte do Douro a presença do Islão se afrontasse praticamente inexistente, a sul a ocupação ia-se, conforme a distância ao Rio, adensando-se. Deve-se salientar, na Idade Média, a notícia da tomada do castelo pelo exército de Fernando Magno, rei de Castela e Leão integrando, desta forma São Martinho de Mouros numa importante linha defensiva duriense que incluía os castelos de Lamego e Castro de Rei em Tarouca. Recorde-se que foi após a tomada de Lamego, a 29 de novembro de 1057, que os exércitos cristãos de Fernando Magno tomaram os castelos de Cárquere e de São Martinho de Mouros. Note-se que o primeiro governador de São Martinho foi o moçárabe Sesnando, o mesmo que governou Coimbra.

Embora não haja grande certeza quanto à origem do topónimo Cárquere pensa-se que o local era já referido pelos árabes, ao qual chamavam Karkar. Mas em 1125 era Cárcari. A existência, no entanto, na Síria, de uma povoação com este mesmo nome torna, obviamente, mais provável a sua origem árabe.  De diferente opinião é a corrente que identifica o topónimo Cárquere a Carcere “prisão” por não existir nenhum elemento onomástico latino nem no indígena celto-lusitano que faça supor o nome carcarus ou carcarius. Resulta portanto o nome Cárquere de um enfraquecimento progressivo da vogal átona car(c)cere.  O que sabemos com certeza a que erigido de forma isolada numa meia encosta, com cemitério adossado, ocupando o primitivo claustro do mosteiro, nas proximidades de uma área com abundantes materiais romanos, o templo alberga imagem de Nossa Senhora de Cárquere atribuída aos séculos VI/VII. Data, contudo, de 1099 a provável reconstrução do templo.  Existiria portanto um anterior sobre o qual se possa suportar a tese de ocupação muçulmana? Correia de Campos, afirma que a abside da igreja de Cárquere seja uma pré-existência e não um acrescento. A hipótese de esta parte do edifício poder ter sido um morábito ou mesmo uma mesquita, não será portanto de rejeitar. A constatação, facilmente verificável no local, de que a janela, em arco de ogiva, voltada a sul, já teria sido outrora uma porta, vem reforçar esta ideia. De facto, se a abside fosse construção posterior ao corpo da igreja esta porta não faria sentido, pois não só seria desnecessária, como iria mesmo prejudicar a celebração eucarística, isto para além de ser algo completamente inédito em termos da arquitetura da época.

Mas o que nos deixou relevantemente a cultura muçulmana a ponto de praticamente todos os dias sermos usufruidores da cultura Islâmica? O vocabulário. Contabilizam-se atualmente inúmeras palavras de origem árabe na língua portuguesa, sendo que o ponto comum da maioria dessas palavras é iniciarem-se por "al". Enumerem-se as palavras açorda, alcatifa, alecrim, alface, alfarroba, algarismo, álgebra, alguidar, algodão, azeite, azenha, garrafa, laranja, limão, melancia, xadrez... E imagine-se até a palavra oxalá, do árabe "en xá Allah" (se Deus quiser). Mais ainda deve-se à ocupação muçulmana o implemento de novas técnicas de fabrico de tapeçarias, azulejos e cerâmica, assim como o implemento de novas variedades agrícolas como o sejam a cenoura ou a alface mas também os citrinos, a amendoeira e até a gloriosa cerejeira. Contam-se ainda espalhados pelo Concelho de Resende variadas alusões toponímicas ao Islão como o sejam caso Arrifana ou Codeçal.

Podemos considerar como resultado da convergência do Cristianismo-Islamismo uma agradável simbiose cultural que de uma forma ou outra transformou, em seu tempo, e criou a sociedade portuguesa que atualmente conhecemos e de forma geral mudou a mentalidade europeia. Como podemos portanto entender os movimentos nacionalistas liderados por Marie Le Pen no seio de uma Europa multicultural? Falemos assim finalmente e zelando pelo valor que as coisas devem, do novo crescente movimento jihadista. O fundamentalismo só por si pressupõe um regresso às origens. E o que dizer de um movimento de, englobando muitos jovens europeus, incultos que desvalorizam a sua própria história e carecem, analogamente ao seu suposto passado, de traços de tolerância e multiculturalidade? Nas palavras do ayatollah Khomeini, marcante figura do novo estado Islâmico, o movimento auto apelidar-se-ia reacionário pelo recuo de 14 séculos face à sociedade racionalista e progressista, o que se traduziu na crença do literalismo, ou seja a validade interpretativa do Corão no século VII é a mesma que atualmente a jihad pratica. E o que é o literalismo se não a insipiência arrebatadora do enquadramento História-Tempo?

Joel Lourenço
Aluno universitário 
da Faculdade de Letras da UP

Bibliografia consultada:

DUARTE, Joaquim Correia; in Resende na Idade Média; Notas e Documentos; Edição da Câmara Municipal de Resende; 2001; Pág. 479, 481 e 489 a 529.
Duarte, Joaquim Correia; in Resende e a sua História; Vol. 2: As freguesias; Ed. Câmara Municipal de Resende; Pág. 169.
AZEVEDO, Maria Luísa Seabra Marques de; in Toponímia Moçárabe no Antigo Condado Conimbricense; Tese de Doutoramento em Línguas e Literaturas Modernas; Coimbra; 2005; pág. 364.
CAMPOS, José A. Correia de - Monumentos da antiguidade árabe em Portugal, Lisboa, ed. do autor, 1970; Págs. 52 e 56; 109 a 112.
CLETO, Joel e FARO, Suzana - Santa Maria de Cárquere: Uma história de pernas. O Comércio do Porto. Revista Domingo, Porto, 20 Junho 1999, Págs. 21-22.
CORREIA, Vergílio - Monumentos e esculturas: seculos III-XVI. Lisboa: Livraria Ferin, 1924; Pág. 70.
(Revista História Viva, Edição Especial, Número 25, págs. 10 a 12 e 37).

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